Doses de Conhecimento sobre a Inconfidência Mineira

Indicações do Prof. Sérgio Vaz Alkmim – professor de história da Funec Cruzeiro do Sul e E.M. Maria do Amparo

Em tempos de pandemia e isolamento social, o cinema tornou-se uma opção interessante e importante. Ele é o exercício da emoção e do olhar subjetivo. Nesses dias, que parece que o tempo parou e nossos sonhos nos abandonaram, é necessário lembrar o que diz o diretor italiano Frederico Fellini: “Falar sobre sonhos e como falar de filmes, uma vez que o cinema utiliza a linguagem dos sonhos; anos podem passar em um segundo e você pode ir de um local para o outro. É uma linguagem feita de imagens. No verdadeiro cinema, cada objeto e cada luz significa alguma coisa, como em um sonho”. É disso que precisamos agora.

Perto do feriado nacional de 21 de abril, que homenageia a Inconfidência Mineira e Tiradentes, sugerimos o filme “Joaquim”, do diretor Marcelo Gomes. Excelente e surpreendente, retrata Tiradentes de uma forma humana com seus dramas e angústias. De uma maneira arrebatadora, lá está nosso passado colonial: o escravismo, as desigualdades sociais, o cotidiano das pessoas, o poder local e da coroa portuguesa. Destaque para a personagem Zuaa/Preta que representa a força da mulher negra que, ao longo do filme, adquiri um papel fundamental e central na trama. A partir de um olhar atento, lá está todo o nosso presente. O filme aproxima o passado de nossa contemporaneidade e a luta e sonhos por uma sociedade inclusiva, diversa e com justiça social.

Ficha técnica

Nome: Joaquim

Nome Original: Joaquim

Cor filmagem: Colorida

Origem: Portugal

Ano de produção: 2017

GêneroDrama

Duração: 102 min

Classificação: 12 anos

DireçãoMarcelo Gomes

ElencoJulio MachadoIsabél ZuaaRômulo Braga

Disponível no YouTube:  

Aproveito o momento, para quem se interessar sobre o tema, a leitura de um artigo que escrevi há alguns anos sobre a criação do herói/mito Tiradentes.

 TIRADENTES: A ORIGEM DO MITO E O MITO DE ORIGEM

“Amanheceu o dia 21 de abril, que lhe abriria a eternidade” [Últimos momentos…p.108], assim descreve o frei Raimundo Penaforte últimos momentos de Joaquim José da Silva Xavier. Morre o homem, nasce o mito. Forjado pelos franciscanos, confessores dos inconfidentes, o ideal cristão é projetado na figura de Tiradentes. Torna-se modelo de homem cristão, generoso, arrependido, castigado, mas preparado para bem morrer. Segundo os confessores, ele recebeu sereno e convencido da gravidade de seus pecados a sentença condenatória. Após a leitura do Decreto Régio, que apenas o condenava à morte, sua reação foi de alegria pelos outros réus favorecidos pelo perdão real, e pouco trabalho tiveram em seu consolo. Descrevem sua caminhada para o cadafalso, como se fosse o próprio Cristo: beija os pés e perdoa o carrasco; recebe a alva, despe a camisa e caminha com o crucifixo na mão.

É desta forma que se formaliza a primeira tentativa de criar uma memória histórica da Inconfidência Mineira e, também, a construção da imagem de Tiradentes. Os frades confessores estavam preocupados em perpetuar, através de memórias e discursos, uma determinada versão que surge como vestígio de uma época e como representação dela. Demonstram suas preferências e a imagem de si próprios, marcados pelos conflitos de uma sociedade.

O mito sobrevive. Martirizado, figura central de um acontecimento, sua imagem é a construção dos ideais cristãos: humildade, arrependimento e esperança de vida eterna.

O marco historiográfico que coloca a Inconfidência Mineira novamente em evidência é o livro de Joaquim Norberto de Souza e Silva, História da Conjuração Mineira, de 1873. Em um trabalho de fôlego, pela primeira vez são utilizados os Autos da Devassa e as memórias dos frades franciscanos. Na vida ou na morte, Tiradentes não foi bem acolhido pelo monarquista Joaquim Norberto: “Morrera o Tiradentes, não como um grande patriota, com seus olhos cravados no povo, tendo nos lábios os sagrados nomes da pátria e da liberdade (…) mas como cristão preparado há muito tempo pelos sacerdotes” [v.2, p.221]. Portanto, não acreditava que Tiradentes tivesse condições, principalmente pela sua falta de caráter, de ser o cabeça da conjuração.

Porém, os primeiros republicanos, em busca de um herói nacional, encontraram nele, o símbolo mais que perfeito. Utilizaram a imagem deixada pelos franciscanos, pois segundo o historiador José Murilo de Carvalho, em seu livro A Formação das Almas, naquele momento “Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano radical, mas sim herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro” [p.70]. Acertaram no alvo. Tiradentes caiu no gosto popular e nunca mais deixou de estar presente no nosso imaginário político e social.

No dizer de Mircea Eliade, historiador das religiões, sobrevive na condição humana a angústia perante o tempo. Desta forma, o pensamento mítico não está morto, sobrevive adquirindo novas formas, novos disfarces e, principalmente, reside sob os auspícios da historiografia.

O Tiradentes dos frades franciscanos consegue reunir em torno de si as principais características do pensamento mítico analisado por Eliade. Segundo ele, o cristianismo conserva um comportamento mítico através do tempo litúrgico que acaba por recusar o tempo profano, recuperando periodicamente um grande tempo, as origens primordiais. A imitação de Cristo como modelo exemplar, a repetição de seus passos pela vida, a morte, a ressurreição, constituem a contemporaneidade do cristão.

A imagem de Tiradentes, herói nacional, mito de origem moderno do nosso ideal de liberdade, sobrevive no tempo. A historiografia da Inconfidência Mineira e o jogo de interesses políticos e ideológicos cumprem o papel de perpetuar o mito e alimentar ilusões no imaginário coletivo. O cenário cristão da sociedade brasileira acalenta o virtuoso Tiradentes.